Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta António Carreira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta António Carreira. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27268: Notas de leitura (1843): "Vestígios Portugueses no Senegal", edição da Embaixada de Portugal em Dacar, 2008 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Certamente que não passa de mera curiosidade, havendo, no entanto, de reconhecer que todas estas referências alusivas a património português se devem a presença multissecular, a ilha de Gorée foi paradoxalmente ponto de venda de escravos e lugar de retempero para navegadores; estudiosos portugueses como Teixeira da Silva Mota, Carreira, Silva Horta, Costa Dias, entre outros, estudaram a presença luso-africana neste ponto da então Senegâmbia, onde podemos incluir judeus e cristãos novos até ao início do século XVII; um historiador francês que aqui já se fez referência, Jean Boulègue também estudou esta expressão da luso-africanidade, que podemos situar entre o fim do século XVI até ao século XVII, autores de viagens como André Álvares de Almada e Francisco Lemos Coelho deram nota dessa presença; o padre jesuíta Baltasar Barreira pregou em Joal e Portudal, no século XVIII eram já só uma memória e os últimos luso-africanos na Senegâmbia viviam no século XIX em Joal. É uma curiosidade mas faz parte do nosso itinerário pelas partidas do mundo.

Um abraço do
Mário



Vestígios Portugueses no Senegal

Mário Beja Santos

Trata-se de uma edição da Embaixada de Portugal em Dacar, 2008, e merece atenção o texto com que o embaixador António Montenegro apresenta a obra:
“Olhando uma panorâmica aérea de Gorée, por exemplo, a primeira imagem desta obra, como o navegador Dinis Dias em 1444 não viu certamente, parece-nos ver uma miniatura de África, com o grande e côncavo golfo da Guiné retido na pequena enseada da ilha, onde muitos navegadores, portugueses, holandeses, ingleses, franceses, sossegaram dos perigos do mar e gozaram os prazeres da tranquilidade.
Quando os navegadores portugueses encontraram esta pequena ilha, a que chamaram ilha da Palma, estavam sôfregos do Oriente, onde queriam chegar depressa. Mas só chegaram ao Oriente mais de cinquenta anos depois, em 1498, com Vasco da Gama. Gorée, então ainda Palma, ficou sempre, nos dois séculos de presença portuguesa, como lugar de repouso, de encanto, de aguada para naus e navegadores recuperarem forças.
Poderá assim dizer-se que os portugueses anteciparam Gorée e a ‘petite côte’ mais a Sul, como lugar de turismo. Mal imaginavam os portugueses que, continuando pela costa de África, avistando e dobrando o Cabo da Boa Esperança, no extremo Sul, subindo a costa Leste, iam encontrar uma outra pequena ilha, a ilha de Moçambique, simétrica de Gorée. Ilha de Gorée e Ilha de Moçambique, ambas Património da Humanidade.
Na sua passagem pela Costa Ocidental de África que hoje é o Senegal, os portugueses deixaram marcas na designação geográfica (Pikine, Roufisque, Portudal, Cap Vert, Almadies, Casamanse, Ziguinchor, etc.), mas deixaram sobretudo uma serena imagem de gente do lado de cima do mar, se sente bem em toda a parte do mundo no meio de toda a gente.
Foram os cartógrafos portugueses quem desenhou os primeiros mapas do território que hoje constitui o Senegal.”


Selecionámos um conjunto de imagens que se prendem com a ilha de Gorée, de construções onde é patente a arquitetura portuguesa; a publicação inclui um conjunto de artigos alusivos à história da Igreja Católica no Senegal, aos luso africanos da Senegâmbia, e também um interessantíssimo artigo de António Carreira referente a aspetos da influência da cultura portuguesa na área compreendida entre o rio Senegal e o Norte de Serra Leoa. Penso que tem muito interesse referir algumas dessas designações: Pikini, de pequenino ou pequeno; Pintade, pintada, ou seja, a galinha do mato ou galinha da Índia; Portonké, é vocábulo composto de porto, abreviatura de Portugal mais o sufixo de origem ou procedência, da língua Mandiga, Nké, homem: homem do porto, ou seja, homem de Portugal; Portugalais, designação dada ao mestiço de origem ou de língua portuguesa; Almadie, do árabe al-madia: difundido pelos portugueses. Usado com o significado de canoa ou piroga; Argamasse, de argamassa, usado para significar barro amassado; Cebessaire, de cabeceira. Usado com o significado de: o que vai (ou está) à frente (o guia); Cheval marim, de cavalo-marinho ou hipopótamo; Cobra, de cobra; Conta de terra: colares que servem de adorno; Coutumes, de costumes. Utilizado com mais frequência para definir direitos de tráfego, impostos, tributos que, outrora, os régulos exigiam para consentir na passagem ou no estacionamento de negociantes europeus ou mestiços nos seus territórios.

Outro aspeto muito curioso da publicação é a indicação de nomes de origem portuguesa de famílias senegalesas que se encontraram na lista telefónica de Dacar, são exemplos: Alcântara, Alexandre, Gomis, Monteiro.


Ilha de Gorée
Mapa manuscrito de Casamansa, cerca de 1800.
Pela convenção de 12 de maio de 1886 entre Portugal e a França, Casamansa passou para a administração francesa
Comissariado de polícia, construído no local onde existiu a primeira capela e cemitério portugueses em Gorée
Casas de traça portuguesa, São Luís (antiga capital)
Saly Portudal, construção sobre fortim português
Casa da traça portuguesa, Ziguinchor, Casamansa
_____________

Nota do editor

Último post da série de 27 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27259: Notas de leitura (1842): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte I: Apresentação sumária (Luís Graça)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24852: Historiografia da presença portuguesa em África (394): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, António Carreira continua a ser de leitura obrigatória para quem estuda Cabo Verde e Guiné. Obviamente que as fontes se têm vindo a diversificar e surpresas não faltam. O nosso mais notável geógrafo do século XX, Orlando Ribeiro, encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino memórias de António Pusich, alguém natura de Ragusa (Dubrovnik), que conheceu em Turim o nosso ministro, o conde de Linhares, veio para Lisboa, e fez vida em Cabo Verde, onde foi governador, acabou por sofrer as consequências das lutas políticas do seu tempo. Temos nas suas memórias dados importantes sobre o povoamento, caso das ilhas de S. Vicente e do Sal, uma exposição sobre a qualidade do terreno e do clima, a proveniência dos seus habitantes, a divisão dos terrenos e o modo de os cultivar, tem mesmo pormenores bastante curiosos, cinjo-me a uma citação: "A cultura do milho, feijão e abóbora merece o primeiro cuidado destes insulares. A qualidade este fruto não é igual em todas as ilhas, pois o milho das ilhas do Fogo e da Brava é superior ao das outras ilhas, por ser miúdo, mais pesado e mais farinhoso. O feijão de Santiago e de Santo Antão é também melhor que o das outras ilhas e não se corrompe com tanta facilidade. A abóbora é quase igual em todas elas, e é abundante e mui boa." Temos aqui um retrato altamente impressivo para melhor entender os grandes acontecimentos da História de Cabo Verde do século XIX. O país tem uma história de literatura riquíssima, merecia que a conhecêssemos melhor, é nela que se vê despontar a riqueza do sentimento euroafricano.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos-novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura. Trabalho solitário (obviamente com sugestões preciosas de peritos à altura), que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Já se falou um tanto dos primeiros séculos depois do descobrimento (há ainda incertezas de quem chegou primeiro), dos contratos de arrendamento, o tráfico de escravos, as companhias monopolistas, as fomes e secas. É tempo de introduzir o crioulo, tema que merece a António Carreira uma posição um tanto controversa, outros contestam a sua tese.

O povoamento era feito com brancos, nobres e plebeus, degredados e escravos. Ainda no século XV vieram casais do Algarve em companhia de António de Nola. As áreas foram divididas em donatarias e começou o povoamento de Santiago e Fogo, a mestiçagem ia-se processando e dando frutos. O número de brancos nunca foi grande. Carreira observa que a imigração branca (forçada) tomou maior vulto no século XIX. “De 1802 a 1882 (nem em todos os anos) foram mandados para as ilhas 2433 degredados, uma média de 38 indivíduos por ano. O comportamento destes delinquentes, alguns autênticos facínoras, mostrou-se pernicioso e influiu bastante no dos escravos e no dos homens livres – pretos e mestiços. De modo geral, os degredados foram distribuídos pelas várias ilhas, embora em Santiago tivesse ficado o maior número. Adaptaram-se com facilidade e as relações com pretos e pardos seguiram o seu curso.”

É evidente que havia discriminação baseada na chamada “diferença de sangue” (cristãos e judeus). No decurso do tempo, Carreira anota três fases distintas da composição da sociedade cabo-verdiana: diminuto número de europeus e apreciável quantidade de escravos da costa da Guiné; poucos europeus e um pequeno número de estrangeiros, brancos naturais das ilhas, mulatos, escravos nascidos nas ilhas ou trazidos dos Rios de Guiné; reduzido número de europeus, brancos nascidos nas ilhas, um número crescente de mulatos e pretos nascidos e de libertos, uns e outros já nados aqui. De onde vieram esses escravos? Fundamentalmente, da Senegâmbia, os estudiosos, a própria literatura de viagens põe ênfase na Gâmbia, nos Jalofos, nos Rios da Guiné, mas também no rio Senegal e por extensão até à Serra Leoa. A questão é mais importante do que se pensa, chega em entroncar no dado ideológico da unidade Guiné-Cabo Verde, seriam povos irmãos, os contestatários da argumentação de Amílcar Cabral negam que a História seja comum, quer pela formação da sociedade escravocrata e proveniência dos escravos, quer pela língua e o substrato cultural. Nem tudo ficou resolvido com a separação efetiva dos dois países, a discussão ideológica subsiste, mas perdeu o calor que teve nos anos 1980. Agora o crioulo.

“Só as relações mantidas nas ilhas de forma contínua, assídua, pacífica e prolongada dos brancos com os escravos, nas casas-grandes e nas plantações, podia levar à formação de um meio eficiente de comunicação pela palavra falada. Contrariamente, a permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária, sem estabilidade nem continuidade que pudesse permitir relações suscetíveis de dar lugar à formação de uma língua. Em nosso entender, o crioulo foi criado nas ilhas de Cabo Verde e, posteriormente, levado para os portos fluviais do continente, da chamada costa da Guiné, pelos mulatos e pretos-forros, quando os brancos os utilizaram como elo de ligação com os negros não aculturados, e com a finalidade de assegurar as relações comerciais. Mulatos e pretos-forros, todos eles crioulos na língua, com robustez física para suportar os rigores do clima, viraram lançados e, desse modo, tornaram-se os grandes agentes da propagação do crioulo naquele setor da costa.”

E Carreira socorre-se da opinião de Baltasar Lopes: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não uma criação resultante diretamente do contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago.” E Carreira também observa: “O crioulo falado na área Senegal-Gâmbia-Rio Nuno é um tanto diferente de o das ilhas. Não se deve estranhar que assim seja. Mesmo em Cabo Verde o crioulo de Santiago, mais aproximado do do Maio, é foneticamente diferente do do Fogo.” Fiquemos por aqui, a tese é polémica e contestada, basta pensar nos trabalhos de Benjamim Pinto Bull sobre o crioulo da Guiné-Bissau.

A obra de Carreira muda de rumo, fala-nos dos assaltos dos corsários, na situação social na época que antecedeu a abolição da escravatura, como esta ocorreu, e a importância que tiveram os tratados assinados entre Portugal e Inglaterra. Procurando sintetizar o que de mais essencial há neste trabalho de indiscutível envergadura, destaca-se: o período de formação da sociedade cabo-verdiana nas ilhas de Santiago e Fogo (séculos XV e XVI); período de transição para o aparecimento de uma pequena burguesia local (século XVII); o tempo de uma sociedade semilivre e decorrente da abolição da escravatura (inicia-se com a emergência de grupos multirraciais, marcados por estatuto social até ao virar do século XIX, em que se consolidou um classe dominante composta por reinóis, brancos da terra e alguns pretos – é este grupo que possui as melhores terras e controla o sistema económico, tem perto de si a classe intermédia que possuiu uma grande amplitude em Barlavento e reduzido número em Sotavento, na base da pirâmide o campesinato, trabalhadores indiferenciados e escravos ainda não completamente libertos.

O trabalho de Carreira não esquece a emigração, mas também o regresso à terra de origem, pautado pela vontade de quem triunfou lá fora se colocar ao lado dos brancos da terra. Deram-se profundos arranjos e disposições no edifício social, ao longo do século XIX, foi o tempo de um povoamento como jamais acontecera. Carreira também enfatiza a importância do papel do clero. Importa não esquecer que a difusão do ensino nas ilhas ocorreu logo nos primórdios do povoamento, o bispado de Cabo Verde surgiu em 1532 e é tido como primeiro do género em toda a África. Em meados do século, os dignatários desse cabido eram já cerca de três dezenas, abrangiam mestres-escola e mestres de gramática. Moldou-se, assim, um substrato cultural, a par do enraizamento de valores e crenças tradicionais, e o cristianismo conseguiu cobrir o vazio espiritual de populações arrancadas do continente. Este clero contribuiu para uma postura multirracial, que gerou uma dimensão ímpar na identidade cabo-verdiana (e diga-se sem hesitação até hoje).

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Dificilmente se entenderá o comércio de escravos na ampla faixa da Senegâmbia, a partir do século XV, e depois em espaços mais reduzidos, nomeadamente após o período filipino, sem decifrar a narrativa como tão admiravelmente António Carreira desenvolve na sua magna investigação Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878). 

Os primeiros colonos aportaram à ilha de Santiago em 1462, na Ribeira Grande, ali se fundou uma feitoria, daqui emergiu uma sociedade como nunca o português tinha forjado, com base na miscigenação prolongada, três grupos étnicos foram formando este espaço insular: brancos (os reinóis), negros maioritariamente provenientes da costa africana e de Angola, e mestiços, aqui convivem os "senhores" (portugueses, italianos, espanhós, flamengos...), os brancos da terra (os mestiços) e os escravos (a grande maioria da população). 

Começa-se por habitar Santiago e Fogo, só mais tarde se estenderá a ocupação efetiva das outras ilhas. Como Carreira sublinha, a designação de escravos de confissão ou ladinos irá ser atribuídas àqueles que frequentaram a catequese e que ascenderam a um patamar que se aproximava do modelo civilizacional de então. Como escreve Carreira, o papel dos agentes do Cristianismo em Cabo Verde foi decisivo na formação cultural das populações em missões, colégios e escolas de todo o espaço insular, e os seus frutos são visíveis nos dias de hoje.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura, trabalho solitário, que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Atenda-se ao que nos diz na nota explicativa:

“Na redação, como é meu velho hábito, não me preocupei em apurar o estilo. Expressei-me informalmente sem qualquer pretensão de fazer trabalho literário. Fui dominado apenas pela ideia de clareza e da honestidade na exposição e apreciação dos problemas, dando sempre o ‘seu ‘ a ‘seu dono’. 

O tema tratado é ingrato e por motivos diversos não entusiasma a maioria dos leitores. Seja por preconceito próprio de uma educação tradicionalista (no mau sentido do termo), seja por receio descontentar certos setores, tudo quanto envolva a apreciação do tenebroso período da escravatura mexe com a maneira de ser de algumas camadas da nossa sociedade. Todavia é preciso vencer esse sentimento de culpa acerca de um passado para o qual as atuais gerações nada puseram, nem depuseram. E isso só se consegue mostrando as duas faces da questão: a boa e a má, comprovadas por documentação honesta e incontestada. 

É indispensável ver o problema da escravidão no seu próprio tempo e segundo a mentalidade da época.
Neste particular é de apontar o exemplo da Inglaterra. Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com esse negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo sentido, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Abusou da sua força. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por nenhum outro povo.”


São incontestáveis os pontos de coincidência, as linhas tangentes nas histórias de Cabo Verde e Guiné. Carreira descreve metodicamente os contratos de arrendamento, o papel exercido pelos mercadores em Santiago; dedica um aprimorado capítulo à figura dos lançados ou tangomaos (em espaço separado aqui se referenciou cuidadosamente o pensamento do autor sobre este fenómeno que acabou por ser marcante sobre a presença portuguesa no continente); situou a atividade de judeus autênticos ou de cristãos novos bem como de fidalgos no tráfico de escravos e tece a seguinte observação:

“As medidas restritivas da fixação de residência de fidalgos e de cristãos novos em Santiago e nos Rios de Guiné, inseria-se no plano manuelino de perseguição de judeus e cristãos novos, e para além da questão religiosa, no receio deles se fixarem e, com o seu conhecido tato comercial, prejudicarem ainda mais o negócio dos cristãos e do próprio monarca.”

Prossegue a exposição sobre as operações de captura e vamos percecionando que o espaço onde se exerce este comércio é inicialmente o correspondente ao da Senegâmbia, mas a área, um tanto aproximada do que é hoje a Guiné, deu um enorme contributo a este tráfico, como ele observa:

“De Arguim ao Gâmbia a melhor mercadoria para a compra de escravos era o cavalo; do rio Gâmbia para Sul passava a ser a manilha de latão. Compreende-se perfeitamente esta preferência. Nas áreas alagadas, na floresta húmida, o cavalo não tinha grandes condições de sobrevivência. A mosca do sono por um lado, o alto grau de humidade, o mosquito e os pastos pouco adequados, por outro, condenavam a sua presença. As populações das rias (do Gâmbia para Sul) não o conheciam nem o sabiam tratar convenientemente. 

Nos primeiros trinta anos de Quinhentos as espécies mais utilizadas e as cotações seguidas variavam consoantes os setores. Assim temos:
- No rio Senegal, terra de jalofos, dava-se 1 cavalo por 10 escravos;
- No rio Gâmbia, ou Cantor, 1 cavalo por 7 escravos. 
- No rio Grande de Buba, terra de biafadas, 6 a 7 cavalos ou 20 a 25 manilhas de latão; ou 10 a 14 cavalos; ou ainda 6 a 7 cavalos por 1 escravo.
- No rio de S. Domingos e na Serra Leoa (1526) segundo os valores estabelecidos nos regimentos dos capitães dos navios do trafico, cada escravo podia ser adquirido por qualquer das seguintes quantidades de mercadorias: 17 ou 18 côvados mouriscos de pano; 38 a 40 alaqueca (pedra semipreciosa); duas mantas de Alentejo; 40 a 50 manilhas de latão; 5 bacias grandes de barbeiro; 1,5 côvados do Reino de pano vermelho (?); 30 a 40 côvados mouriscos de lenço francês.”


E, mais adiante, Carreira refere que em toda a Guiné a valia da cera de 3 quintais por negro era um pagamento corrente (opinião do investigador P. António Brásio). O autor não esquece também do preço dos escravos em moedas quando eram reexpedidos com destino a Lisboa, Antuérpia, Sevilha, Índias de Castela, dá-nos referências de preços até ao fim da escravatura.

Carreira dedica um capítulo para a indicação das diferentes mercadorias levadas à costa africana, que vão desde panos, mantas, contaria e muitas outras. Trata igualmente com cuidado os contratos de arrendamento das áreas dos tratos e regastes. 

O período filipino, abundantemente estudado também no que toca à presença portuguesa na costa ocidental africana, deixa claro como se ia reduzindo a presença comercial, tornara-se precária, cada vez mais distante, a conceção entre Arguim e Cabo Verde, eram holandeses e franceses que usufruíam então a posição vantajosa; aliás, os holandeses irão ocupar a fortaleza de Arguim em 1638. Tentar-se-á animar todo este tráfico com uma sucessão de Companhias e revitalizar a importância de Santiago como placa giratória da reexpedição de escravos.

Vale a pena retomar o discurso de Carreira:

“Cabo Verde e a Guiné atravessaram no final do século XVII aos meados do século XVIII um período difícil, durante o qual se acentuou a decadência: crise de comércio, ausência absoluta de navegação nacional e com tudo isso a progressiva fuga de capitais e de homens brancos, mestiços e pretos, tanto os de Cabo Verde como os de Cacheu.

Todo o período decorrido até à instalação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, ficou marcada pela ruína das vilas e das fazendas agrícolas, pela fuga de homens brancos, pela queda vertical das atividades económicas – desde o comércio de géneros e mercadorias até ao de escravos.”


E há as crises de fome e de epidemias, outra via para o despovoamento, Carreira vai anotando as datas destas calamidades até ao século XIX, é indispensável estar atento a estes acontecimentos para se entender a resiliência e a vontade de emigrar do cabo-verdiano. Obviamente que o autor dedica muita atenção à ocupação e exploração das ilhas, ao braço escravo como força de trabalho, refere o algodão e a urzela como os primeiros géneros da economia destes ilhéus, vem depois a cana do açúcar, a tecelagem, as produções de subsistência, os milhos, os feijões, a batata-doce a mandioca, um pouco de vinho. O pescado era economicamente insignificante, um quase recurso alimentar, faltavam embarcações capazes de permitir uma saída para o largo.

Não menos relevante é a narrativa tecida pelo autor quanto à religiosidade, já que datam da primeira década de 1500 as primeiras leis para a ministração do batismo aos escravos. Aparecem assim os ladinos, batizados e ensinados a trabalhar e a falar a língua portuguesa (certamente que o crioulo. Faziam-se batismos em massa, os missionários não escondiam o que pensavam da escravização injusta, daí as tentativas tendentes a obter a ladinização dos escravos, um dos caboucos que irão fundamentar a identidade cabo-verdiana e a sua cultura. Assim se cristianizaram as gentes de todas as ilhas. 

“E de tal forma a semente deu seus frutos desde os alvores de Quinhentos, que no decurso deste quase meio milénio, a doutrina e a moral cristã, se propagaram de geração em geração radicando-se no espírito das atuais 270 mil almas que povoam o arquipélago. E terá havido algo de parecido em qualquer outra terra portuguesa, nos trópicos ou no equador?”

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Nos preparativos de uma viagem que fiz a S. Vicente e Santo Antão fiz algumas leituras recapitulativas e meti no saco outras que me permitissem entender melhor a presença portuguesa naquele arquipélago. Resolvi reler uma obra indispensável de António Carreira, "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata", com sucessivas edições tanto em Portugal como em Cabo Verde, e foi assim que vi o modo tão bem organizado como este investigador de nomeada refletiu sobre a importância dos tangomaos ou "lançados" a quem Carreira atribui um papel de extrema utilidade. 

Esta obra data de 1972 e prenuncia outros estudos tanto de sua lavra como de outros. Carreira irá escrever sobre o tráfico de escravos, anunciará nesta obra da formação de uma sociedade escravocrata a presença nos rios de Guiné de judeus e cristãos novos, tema que outros autores desenvolverão. Neste trabalho aprofundará o papel das companhias majestáticas e dos seus insucessos. Aborda sempre conceitos todos este comércio negreiro, a partir do século XIX vilipendiado, dentro de um quadro da mentalidade do tempo em que para todos o comércio da escravidão era lícito.

Um abraço do
Mário



Lançados ou Tangomaos, a análise de António Carreira

Mário Beja Santos

Quando publicou em 1972 esta obra ainda hoje referencial, António Carreira já tinha largo percurso historiógrafo, consultara em Cabo Verde o registo de escravos, produzira a importante obra Panaria Cabo-Verdiana-Guineense, As Companhias Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos. No prefácio justifica porque é que o tema é ingrato já que tem a ver com o tenebroso período da escravatura e socorre-se do exemplo inglês: 

“Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com este negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo momento, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por um outro povo.”

Na capa da segunda edição, bem como na primeira edição, de iniciativa do autor, aparece a Casa-grande de S. Martinho, nos arredores da Praia, seria uma das últimas reminiscências da época escravocrata.

Voltei a ler esta obra exemplar em jeito de me preparar para uma viagem que fiz às ilhas de S. Vicente e Santo Antão e verifiquei que,  para além da história dos contratos de arrendamento, da obtenção de escravos, das mercadorias usadas neste comércio, da formação do crioulo e até se chegar à situação social na época que antecedeu a abolição, Carreira tratava com a melhor investigação possível do seu tempo os lançados ou tangomaos, e assim considerei da maior utilidade fazer uma recensão de personagem tão determinante do seu tempo.

“Na fase inicial, os lançados eram constituídos apenas por brancos (cristãos e judeus) estantes em Santiago, e por alguns reinóis não moradores que com aqueles se mancomunavam e faziam parceria nos negócios. Poucos anos volvidos o seu número avolumou-se não apenas pela afluência de mais brancos como pelo surto de mulatos e de pretos-forros, uns e outros de inteira confiança dos brancos. 

Admitimos que a participação de mulatos e de pretos-forros nas atividades comerciais de brancos (compra de géneros e de escravos, venda de mercadorias) nos rios de Guiné só foi possível após a formação de um meio de comunicação válido entre esses dois grupos – de brancos e de pretos e mulatos – ou seja, incontroversamente, a língua crioula.

Independentemente do condicionalismo criado pelas leis de comércio, temos também de considerar como outros dos factores a influir do surto do lançado os resultantes das normas fixadas para a residência de brancos no Ultramar (limitações postas ao fornecimento aos brancos de Santiago das chamadas mercadorias defesas necessárias aos tratos e resgates, política seguida no arrendamento das áreas de comércio e limitações postas à residência de brancos nos rios de Guiné).”


As referências aos lançados surgem no início do século XVI, são tratados como cristãos omiziados. E Carreira questiona de onde vem o nome de lançado e pouco depois o de tangomaos. Todos os cristãos que se instalassem nos rios e portos africanos sem licença régia eram havidos por lançados (de lançar, tomado no sentido de internar-se, avançar pelo sertão a negociar). O teor das cartas de arrendamento é drástico na proibição do que faziam os lançados, deviam ser mortos ou entregues aos capitães dos navios. Da documentação existente regista-se a presença de branco e de provavelmente judeus, e que faziam concorrência ao comércio régio, desarticulando-o, daí a pena de morte e o confisco de bens.

“Aparece nas leis (certamente já como linguagem corrente), um outro vocábulo que define esses mesmos transgressores: o de Tangomao e suas diferentes formas gráficas (Tanguomããos, Tamgo mãos, tangomao, tango-mao, tangosmaus, tangomagos, etc.), sempre com significado igual ao dado a lançado.” 

Carreira afasta qualquer hipótese de se relacionar este termo a uma divindade, refere apreciações da literatura de viagens como Valentim Fernandes, o padre Manuel Álvares que referem ídolos com tal nome, mas não encontra qualquer relação.

A economia mais afetada pela atividade dos tangomaos era a de Santiago, há pedidos constantes da câmara para tirar da Guiné os tangomaos. As ameaças não surtiram nenhum efeito, os tangomaos estavam de pedra e cal. Missionários como o padre Manuel Álvares tinham deles uma opinião que não era nada favorável dizendo que colaboravam com o gentio idólatra. André Donelha, em 1625, aponta a presença de tangomaos entre os Jalofos, na Serra Leoa e no rio de S. Domingos, outros relatos referem-nos nos Bijagós, em Cacheu e em partes de Geba.

E Carreira prossegue:

“No século XIX, e mesmo no atual, alguns autores tentaram esclarecer a origem do termo tangomao. A análise mais remota é de Tavares de Macedo, em 1857 que, depois de aludir às ordenações manuelinas e doações ao Hospital de Todos-os-Santos, cita o jurisconsulto Molina, tangomao é palavra que em terra de pretos significa os que vão pelas feiras e trocam mercancias por negros escravos que trazem aos portugueses a vender.”

Há outros autores que falam de tangomao como Pombeiro ou negociante de escravos. Carreira procura ser pormenorizado e avança com outras opiniões em que inclui Correia Lopes e Teixeira da Mota. Em sua opinião, os que viravam tangomaos não deveriam ser apenas reinóis idos acidentalmente aos resgates. Seriam, na grande maioria, os tais brancos estantes em Santiago e no Fogo e outros conluiados. Inicialmente tentou-se uma política de brandura para impedir a formação destes bandos de tangomaos, não resultou e mais adiante procurou-se a aplicação de sanções pecuniárias e depois a pena de morte.

E Carreira dá-nos o seguinte entendimento:

“Os lançados serviam de intermediários entre o traficante não estante, nacional e estrangeiro, e os chefes locais e as cáfilas procedentes do interior, vendedores de escravos e de géneros. Fixaram-se próximo do interior ou nos locais de concentração das caravanas, em regra junto aos portos de mar ou fluviais. Para atuar mais eficazmente valeram-se do seu conhecimento do meio e das línguas nativas. Esses homens duros e resolutos adaptaram-se facilmente a cada meio africano. Não se importaram de sacrificar a sua moral, a sua educação, a sua religião. Não temeram o clima de África, de si esgotante, nem a floresta ou as terras. O isolamento obrigou-os a ceder perante enormes forças sociais. Para se integrarem nos mais diferentes aspetos das sociedades onde viviam juntavam-se facilmente à mulher africana. Abjuravam da sua religião para seguir o chamado paganismo; aliavam-se a chefes amigos para combater e dominar inimigos. Não se intimidaram com a excomunhão. A onda de tangomaos cresceu por todo o século XVI e mais ainda na centúria seguinte, na proporção em que surgiam mais interessados no tráfico. Os primeiros a aparecer na competição foram os franceses, logo seguidos pelos ingleses e estes, a curto intervalo, pelos holandeses. De todos eles os tangomaos se tornaram clientes prestimosos.”

Em jeito de conclusão, os lançados ou tangomaos eram portugueses que violaram as ordens régias indo de Lisboa ou Santiago para os rios de Guiné na mira de enriquecer, adaptaram-se, socorreram-se de cerimónias mágicas para meter medo aos seus cativos, procedimento que deixou rasto, os escravos que irão para as ilhas de Cabo Verde manterão superstições (como aliás também muitos brancos) haverá nas ilhas feiticeiros e adivinhadores.

O caso mais célebre de tangomao que se conhece é de João Ferreira, natural do Crato, chamado pelos negros o Ganagoga, o que quer dizer na língua dos biafadas homem que fala todas as línguas. 

“Da ação dos tangomaos resultou, em parte apreciável, a ruína do comércio português em todos os setores do tráfico. Mas, a eles ficou devendo em grande medida o conhecimento pormenorizado de vastas regiões, do curso dos rios, das gentes e seus costumes e práticas, dos processos de comércio seguidos, das mercadorias preferidas, das produções locais de maior interesse. Difundiram costumes e concorreram para a formação e difusão do crioulo e do português. E ao fazer um balanço desapaixonado, tudo quanto se lhe aponta de nocivo fica compensado pelo que de bom e de útil fizeram.”
António Carreira, indiscutivelmente o mais influente e importante historiador de origem cabo-verdiana da sua geração. A sua obra "Cabo Verde, Formação e extinção de uma sociedade escravocrata", 1972, continua a ser incontornável na investigação universitária
Imagem constante no texto A poderosa "Bebiana Vaz" e o aparecimento dos "gans" Vaz e Gomes em Cacheu, por Celina Tavares, com a devida vénia
Imagem alusiva às “Signares”, que tiveram um papel determinante na construção do mundo moderno africano, a Guiné não escapou à sua influência, caso de Aurélia Correia
Imagem antiga da colonização portuguesa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24793: Historiografia da presença portuguesa em África (391): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24574: Notas de leitura (1608): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira foi bastante ousado neste seu ensaio, não lhe faltou ambição, alerta o leitor, procura pôr à sua disposição informações sobre as principais causas da escassa presença portuguesa na região da chamada Senegâmbia Meridional, disseca as incúrias que incorreram para este fracasso, e desmonta a teoria da conquista da região cuja posse efetiva não ultrapassou cerca de 60 anos. Não foge à polémica e dá mesmo as suas razões para dizer que o crioulo que se fala na Guiné é visceralmente herdeiro do crioulo cabo-verdiano, é língua veicular recente, começou a titubear na década de 1920 e confirmou-se como língua franca na década de 1960. Benjamim Pinto Bull não concordaria com esta opinião e talvez outros estudiosos da génese do crioulo guineense. Estamos perante um ensaio que remexe nas entranhas da ocupação portuguesa, das relações comerciais, mantém-se atento àqueles grupos de judeus que se fixaram à volta do rio Senegal, estuda o comércio em torno do Casamansa, do Cacheu, do estuário do Geba, do Rio Grande de Buba; mostra o esforço desenvolvido na Restauração para se conseguir fixação no território. Enquanto tudo isto se passa, os guineenses vivem fora da economia de mercado, tudo se alterará com o cultivo em larga escala da mancarra e do arroz. Obra incontornável, não se percebe como se ficou numa edição modesta, é mais do que credora de uma nova edição para quem estuda a Guiné com bases no rigor dos dados e na desmontagem de mitos e falácias.

Um abraço do
Mário



Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900) – 2:
Leitura indispensável


Mário Beja Santos

António Carreira (1905-1988) foi um administrador colonial que deixou um impressionante legado historiográfico, a Guiné foi o centro dos seus trabalhos. Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900), edição de autor, Lisboa, 1984, é uma obra de leitura obrigatória, insere uma síntese admirável sobre diferentes incursões do autor nos campos da etnografia, da economia, do tráfico negreiro e o histórico da presença portuguesa na Senegâmbia meridional. Inevitavelmente, disserta sobre a questão do tráfico negreiro, fazia parte da permuta de mercadorias e bens por escravos, chamava-se resgate. A moeda surge mais tarde, no último quartel do século XVII, ganha então importância a pataca espanhola, em prata. Carreira observa que a difusão da prata amoedada deve-se quase exclusivamente aos espanhóis, a pataca impôs-se a todas as outras moedas no mercado do setor.

E refere os itinerários da escravatura:
“As carregações de escravos eram encaminhadas (pelo menos de 1468 a 1645/47) em regra para a ilha de Santiago e dali com destino a Portugal, Cádis, Sanlúcar de Barrameda, Canárias, Índias de Castela, Antilhas, Santo Domingo, Cartagena, Nova Espanha (México), Barbados, norte do Brasil. E o autor também elenca os géneros de origem africana movimentados em exclusivo na costa, caso do algodão e respetivos panos, âmbar, anil vegetal, nozes de cola".

De 1700 a meados de 1800, observa o autor, iremos assistir à desorganização das trocas comerciais, era grande a pressão dos régulos para fazer transações fora das alfândegas, a desorganização abriu as portas à desagregação – ruínas das fortificações, insuficiência das guarnições militares, recessão comercial, ausência de navios de longo curso, falta de rendimentos para as mais elementares despesas, assistiu-se a um apagamento de Cacheu, Farim e Ziguinchor. E tudo foi agravado pelas constantes lutas intestinas entre etnias e fações de uma mesma etnia, passaram a ser endémicas.

Tenta-se uma resposta, é criada a Companhia de Grão-Pará e Maranhão, entidade que teve no encargo, em exclusivo, a governação e a exploração económica das ilhas de Cabo Verde e dos presídios da Guiné, de 1755 a janeiro de 1758 – a empresa administrou os presídios, cobrou receitas públicas e pagou despesas com a manutenção desses organismos, adquiriu géneros de produção africana e, acima de tudo, escravos. Carreira dá-nos o contexto para a panaria cabo-verdiana e depois a guineense, os chamados “panos da terra”.

Todo o seu notável ensaio sobre quatro séculos de presença portuguesa nos rios de Guiné tem um cunho profundamente didático. Veja-se um exemplo:
“Capitania e suas dependências é a designação usada para definir o governo de Cabo Verde, sob cuja jurisdição estava a parte continental conhecida por ‘Rios de Guiné’. O esquema que podemos chamar divisão territorial baseou-se nas praças, presídios, pontos ou postos e feitorias. O número de praças, de presídios e postos manteve-se quase sempre o mesmo e nos mesmos locais até 1831, quando por razões ligadas à penetração francesa no rio Casamansa, se criaram dois postos militares, o de Bolor, na margem direita do Cacheu, e o de Gonzo, na margem esquerda do Casamansa".

Um outro dado importante que Carreira põe em destaque é o fim da supremacia Mandinga e a invasão dos Fulas. Tudo começa com a invasão do Cabu. Em 1850/1851 teve lugar o recontro mais violento conhecido por batalha de Bérécolom e cerca de 1853/1854 cresceu a intervenção dos Futa-Fulas. E dá-se a batalha de Turuban em que foram derrotados e submetidos os Mandingas, assim como os outros povos das regiões periféricas. O mesmo aconteceu com os Manjacos da Costa de Baixo que se sublevaram e se independentizaram do poder central. A presença portuguesa entrara num vespeiro. Com um novo poder do Cabu, com os Fulas-Pretos a libertarem-se dos Fulas-Forros e a encaminharem-se para o Sul, deu-se o confronto entre estes Fulas e os Beafadas. Todo o território do Cabu foi invadido por uma expedição procedente do Casamansa, dirigida por Mussá Mõló que se declarou porta-bandeira da libertação dos Fulas cativos ou Fulas-Pretos do domínio de outras etnias. Eclodiu um tipo de guerra de libertação acompanhado de pilhagens e escravização.

Foi uma guerra que se prolongou até cerca de 1899 e que teve aspetos desastrosos para a presença portuguesa, impotente para intervir numa autêntica Guerra Santa do Islão, o suserano do Cabu decretara em 1874 a anexação do território de Bolola, os derrotados eram escravizados pelos grupos islamizados dominantes, Fulas-Forros e Futa-Fulas. Todos os regulados à volta viviam em estado de terror. Quando acabaram as guerras, o Islamismo vingou, quase todo o Forreá aceitou o Islão, embora o povo tenha permanecido animista. Com toda a dificuldade da falta de recursos, foi nos presídios de Geba e Buba que se reagiu recorrendo a tratados de paz. Em 1881, assinou-se em Bolama, com certo aparato, o tratado de paz com os régulos Fulas, Futa-Fulas do Forreá e do Futa-Djalon. O tratado nunca foi cumprido, representou para Portugal um processo dilatório, um compasso de espera para permitir o rearmamento.

Chegada a hora de proceder às conclusões, Carreira é muito frontal quanto a tudo o que apreciou no seu trabalho:
“Parece lícito afirmar que até à segunda metade do século XIX a evolução do processo histórico da Guiné mostra que o território viveu quase fechado a culturas estranhas, com a sua economia de subsistência, esta auxiliada um tanto pela comercialização, em modesta escala, de couros, cera, algum marfim, panos e bandas de algodão. E escravos.
O comércio das praças cingia-se à troca de mercadorias importadas por géneros de cultivo ou de realização africanos. A moeda praticamente não funcionava.

A mancarra será cultivada em apreciável escala em 1919-1920. Os couros que se exportavam não provinham do território da Guiné. Pode dizer-se que só a partir daí as populações guineenses entraram na economia de mercado. As praças e presídios serviam de pontos de apoio para fins meramente mercantis – a europeus, mestiços e cristãos da terra. A convivência dos ocupantes das praças e presídios com as populações em derredor dependia da vontade das autoridades tradicionais.

Em nossa opinião, não se criou nenhum crioulo na área conhecida por Guiné. O que se deu foi a difusão dos rios da Guiné do crioulo nado em Cabo Verde. Havia elementos de ligação (os Línguas) que falavam o proto crioulo, o Pidgin. O crioulo cabo-verdiano só se transformou com intensidade em língua franca acessível a todas as etnias nos anos 1920 e seguintes e de forma rápida nos anos de 1960”
.

A historiografia possui poucas sínteses deste valor, é deplorável que este trabalho não tenha vindo a ser reeditado, atendendo ao papel incontornável que ocupa nos estudos portugueses e guineenses.

Mapa de África (1689), de Van Schagen
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24565: Notas de leitura (1607): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24565: Notas de leitura (1607): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira continua a ser um nome sonante da historiografia guineense. Poucos anos antes do seu falecimento tomou a iniciativa de publicar um estudo que se revela ainda hoje incontornável para quem queira organizar a história da presença portuguesa na região, procura responder a questões basilares para as quais infelizmente continua a não haver uma sequência cronológica consolidada: o fracasso dessa presença, as razões por que se limitavam os portugueses a terem de se contentar com um território eufemisticamente designado por Senegâmbia Meridional, e desmontando ou desmistificando a teoria da conquista de uma região, que, como ele diz, terá tido posse efetiva uns 60 anos, e daí se compreender como tudo foi tão duro e tão difícil, e por vezes tão sangrento, nas chamadas operações de pacificação, sobretudo após a definição de fronteiras, em 1886.

Um abraço do
Mário



Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900) – 1:
Leitura indispensável


Mário Beja Santos

António Carreira (1905-1988) foi um administrador colonial que deixou um impressionante legado historiográfico, a Guiné foi o centro dos seus trabalhos. "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", edição de autor, Lisboa, 1984, é uma obra de leitura obrigatória, insere uma síntese admirável sobre diferentes incursões do autor nos campos da etnografia, da economia, do tráfico negreiro e o histórico da presença portuguesa na Senegâmbia meridional. Em jeito introdutório, Carreira diz-se interessado em compreender as razões do fracasso da fixação dos portugueses na Costa Ocidental Africana, na área geográfica compreendida entre o rio Senegal e o norte da Serra Leoa. Adianta que as relações comerciais com os povos da costa, de Arguim ao Cabo Verde continental tiveram algum incremento nas primeiras décadas de 1500; e mais tarde tal relacionamento intensificou-se de Cabo Verde à Serra Leoa. Mas irrompeu a concorrência e esta fez decair a presença portuguesa a partir da segunda metade do século XVI, é hoje assunto alvo de consenso de que a União Ibérica lesou seriamente tal presença em detrimento espanhol, francês, holandês e inglês. O autor lembra-nos que a região era conhecida por Rios de Guiné de Cabo Verde por este período.

E dá como móbil do seu trabalho, pôr à disposição informação do seguinte teor: a) as principais causas da perda pelos portugueses das posições que pretendiam assegurar; b) as fraquezas, as misérias e as incúrias que concorreram para o fracasso; c) as razões por que os portugueses tiveram de se contentar com o território compreendido entre o Cabo Roxo e a Ponta Cajé; d) desmontar/desmistificar a teoria de conquista de uma região que terá tido posse efetiva uns 60 anos.

Discorre sobre a toponímia da Costa Ocidental Africana nos séculos XV a XVII, isto para nos alertar a existência de profundos desconhecimentos da geografia. Cadamosto deu à Costa Ocidental Africana a designação de Baixa Etiópia e à população chamou-lhes Negros da Etiópia. Jerónimo Münzer, no Itinerarium (1494), alude que os etíopes andam sempre em guerra uns com os outros, fazem-se mutuamente prisioneiros e vendem-se por uma bagatela. Duarte Pacheco Pereira fala em Etiópia Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental que iria do rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança, dando-lhe o nome de Guiné, e o nome de Etiópia Oriental era conferido à Abissínia. Todos estes viajantes falavam de um amplo espaço de Nigrícia. Quando a expressão de rios de Guiné de Cabo Verde começou a cair em desuso o nome então em voga era Senegâmbia, reservando-se para a área onde era mais notória a presença portuguesa a Senegâmbia Meridional. Carreira repertoria os principais grupos étnicos do Senegal, da Gâmbia e da Guiné.

E questiona algumas das causas do fracasso da ocupação dos rios da Guiné pelos portugueses. Para Carreira era o interesse comercial que predominava, devido à falta de recursos a necessidade de ocupação só começou em meados do século XVIII e por força da concorrência. Até lá, a política régia era arrendar, foi assim que nasceu o contrato com Fernão Gomes numa fase dinâmica em que era preciso ir conhecendo mais da Costa Ocidental Africana. Não deixa de referenciar o fenómeno dos lançados e define as zonas de comércio dos portugueses – escala sempre muito temporária, contratos acidentais – pagava-se aos régulos para estacionamento nos portos (as daxas), a penetração nas comunidades africanas acabou por ficar reservada a um número muito restrito de europeus (cristãos, judeus e cristãos-novos) e mestiços de Cabo Verde. A Coroa bem procurou reprimir o fenómeno dos lançados, tomaram-se disposições régias para combater o aventureirismo comercial, com resultados praticamente nulos.

Carreira regista figuras que acabaram por ter significado como presença portuguesa, caso dos judeus de origem portuguesa: o judeu João Ferreira, natural do Crato, a quem foi dada a alcunha de Gana Goga (homem que fala todas as línguas) que penetrou no reino dos Fulas e o grumete de apelido Gomes que deixou a sua presença no que é hoje a Guiné Conacri (Gomissia).

Mas é facto que se começou a registar um comércio a partir de meados de 1600 nos rios Casamansa, Cacheu, estuário do Geba (Bissau, Geba e Fá), rio de Buba ou Biguba. Regista igualmente as posições até final do século XVII de aldeias de judeus portugueses, caso de Porto Dale ou Portudal, Rufisque, com judeus estrangeiros, Joala, com filhos da terra, bem como posições nos rios Gâmbia e Cantor. Mas não deixa de acentuar que a proclamada soberania portuguesa não passava de um mito. E deixa-nos depois notas sobre portos e rios de tratos e resgate, o tipo de praças e presídios.

A Restauração obrigou o rei D. João IV a dar mais atenção aos problemas desta costa africana. Os castelhanos, no intuito de manter o fornecimento regular de escravos para as suas possessões nas Antilhas e na América Central, tentaram assenhorear-se dos rios da Guiné, entre o rio Gâmbia e o estuário do Geba. Eram apoiados por negociantes portugueses residentes em Sevilha que por sua vez possuíam agentes de confiança em Cacheu (o patriotismo dos portugueses erodia-se perante o prestígio das patacas das Índias…). Houve, pois, que aumentar encargos e trazer soldadesca para Cacheu, Bissau e Farim. Começa a aparecer documentação que explica claramente a concorrência comercial de estrangeiros e a agressividade das populações locais; o comércio circunscrevia-se à compra de escravos, cera, cola e algum marfim, vendendo-se tecidos, ferro, adornos, aguardente, etc.; a indisciplina reinante no povoado de Cacheu entre portugueses e lançados é facto comprovado; como comprovado se encontra a total impossibilidade de fixação de brancos nos Bijagós, face à oposição sistemática das populações. Em pleno século XVII, a presença portuguesa estava condicionada a Cacheu, Farim, Geba, Bissau e Rio Grande de Buba.

E diz Carreira:
“A precariedade da ocupação por europeus nos rios em geral, demonstra toda uma atividade puramente mercantil e de ocasião. Não tendo sido possível o conseguimento de condições de segurança para a montagem de rede de comércio fixo em cada ponto, todo o sistema obedecia à movimentação dos negociantes, consoante o que permitiam as populações nativas”. E termina estas considerações sobre mercadorias usadas no comércio negreiro, vão desde a aguardente aos tecidos, balas de espingarda, contas e conchas, espingardas, missanga diversa, pedreneira, sal, bebidas capitosas e vinho – o rol de tecidos é muito grande. Os produtos de origem africana enviados para a Europa e Américas passavam por dentes de elefante e de cavalo-marinho, cera e couros. As maiores quantidades destes produtos saíam (cera e marfim) dos rios Senegal, Gâmbia, Casamansa e Cacheu.

Mais adiante vamos falar do comércio negreiro.

(continua)
Mapa de África (1689), de van Schagen
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24554: Notas de leitura (1606): "Um cripto na terra vermelha da Guiné", por Humberto Costa; 2.ª edição, 2020, Eudito (Mário Beja Santos)

sábado, 24 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24428: Os nossos seres, saberes e lazeres (578): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (108): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: visita a Xôxô e à Ponta do Sol, e subida até ao Paúl (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Aproxima-se o termo da viagem, tenho o coração contrito, dou comigo a pensar que Santo Antão merecia uma mais longa permanência, a velha estrada dos tempos coloniais é de uma insofismável beleza, percorrerei a ilha a cerca de metade, há quem me dissesse que visitei o que há de mais surpreendente, que não me esquecesse que há paisagens lunares, acredito que sim, aliás vindo de Porto Novo para a Ribeira Grande cerca de metade da paisagem só ganha realce por termos os penhascos do lado esquerdo e os desfiladeiros sobre o mar no lado esquerdo, mas houve oportunidade de ver o contraste entre o árido e o frondoso entre Corda e Esponjeira. Prometo seguidamente falar do trapiche e do grogue, das visitas destes dois últimos dias, meteram até dragoeiros e passeios no Paúl, aqui comi a melhor cachupa rica da visita, com o mar amistoso pela frente. E depois a viagem de regresso para S. Vicente e a despedida do Mindelo, o mínimo que eu posso dizer é que foram férias inesquecíveis, haja saúde e em tempos vindouros a viagem continuará, o viajante continua à escuta.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (108):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: visita a Xôxô e à Ponta do Sol, e subida até ao Paúl (7)


Mário Beja Santos

Só tarde e a más horas é que descobri umas folhas de apontamentos que precederam à organização desta viagem. Talvez valha a pena fazer aqui um bosquejo do que transcrevi, parecia-me dados de referência para estudar o homem e o lugar:
“Geologicamente, historicamente, culturalmente e até etnográfica e etnologicamente, as ilhas de Cabo Verde voltam as costas ao continente africano. Abismos submarinos de 2 a 3 mil metros as separam da África negra.” – Padre António Brásio, 1962.
“(…) No geral, a opinião que ainda hoje se forma destas ilhas não é nada favorável: terras desarborizadas, agrestes, com muitos montes e vales, assoladas por frequentes secas e fomes, ocupadas por muitos mestiços e pretos, e por alguma gente branca – naturais e imigrantes.” – António Carreira, Cabo Verde, Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata, 1983.

Deu-me também para tentar perceber em que se baseia o potencial literário do país, para ser honesto lera há dezenas de anos um livro com assunto passado em Santo Antão que muito me impressionara, "Os Flagelados do Vento Leste", de Manuel Lopes, 1960. Os estudiosos consideram que a literatura cabo-verdiana se pode dividir em dois períodos: antes e depois da Claridade, o suplemento cultural que teria revolucionado a mentalidade destes insulares. Cabo Verde teve o seu Liceu das Humanidades em 1848, depois tornado em Liceu Seminário de S. Vicente, os jornais sucederam-se uns aos outros, na segunda metade do século XIX havia só na Praia 13 associações recreativas e culturais; fora do espaço ilhéu havia manifestações jornalísticas, caso do semanário "A Alvorada", em New Bradford (EUA), o seu diretor, Eugénio Tavares não só fazia críticas à política norte-americana nas Filipinas, como clamava pela autonomia das colónias portuguesas. "A Claridade" surgiu em 1936, é dada como ponto de partida de uma visão específica sobre os problemas da região, a revista foi lançada por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes, aberta à literatura brasileira, a revistas portuguesas como a "Presença", etc.
E voltei a ler "Os Flagelados do Vento Leste" que tanto me impressionara enquanto jovem adulto, com as suas secas e as suas chuvas e a lestada – o harmatão, o vento leste, a dádiva do deserto do africano, e depois os problemas humanos, o amor e a morte.

Edição de 1960, Ulisseia, capa de Marcelino Vespeira
Encontrei as folhas do circuito em Santo Antão, bem mal garatujadas, por sinal. Saio de Porto Novo num coletivo para a Ribeira Grande, o apartamento tem vista, a proprietária é italiana de Bolzano, fala fluentemente crioulo, o marido é o sr. António, pescador e músico; fica prometida uma refeição de peixe, tudo apanhado ao amanhecer. Depois de laboriosa conversação telefónica entre esta charmosa senhora italiana e o senhor Adelino, e definido o preço, amanhã o passeio, saindo daqui, é rumar para a velha estrada de Ribeira Grande para Porto Novo, segue-se para Corda, as vistas das montanhas são de cortar o fôlego, impressiona-me muito Esponjeira, Lagoa, a visão ao longe da Cova do Paúl, parece um emaranhado de montanhas, almoçamos na ribeira do Paúl, depois Xôxô, o sr. Adelino chama a atenção que o cemitério da Ribeira Grande fica no alto da montanha sobre o mar. Estamos agora na Ponta do Sol, conheço estes barcos de pesca como se estivesse em Sesimbra ou noutro porto português, vê-se bem que o turismo aqui é muito influente; Ponta do Sol teve aeroporto, houve um enorme desastre aéreo, acabou-se o aeroporto.
Outra imagem da Ponta do Sol
Andava a bisbilhotar a abandonada pista do aeroporto, então vi gente a avançar para estas rochas de balde e faca na mão, temos lapas pela certa, o importante é que o mar é lindo, o céu azul pintalgado de nuvens brancas, e dou comigo a pensar nesta versatilidade que estas ilhas oferecem.
Da Ribeira Grande faz-se transbordo para o vale do Paúl, via sinuosa, entre pedregulhos, extensões de cana, milheirais, palmeiras, por mim esta subida íngreme podia ir até aos céus. A visão que se tem do apartamento é como se estivéssemos num balcão a ver a falda da montanha, muito gretada, cheia de caminhos, terraços cultivados, gente a subir e a descer, o mais impressionante será a noite, ouvir gente a subir e a descer em conversa em alta voz, até tremo a pensar o que seria uma queda por aqueles precipícios. A segunda imagem mostra o Chão de João Vaz, ao fundo em tons amarelos, a Aldeia Panorâmica, toda esta região é apreciada por gente que gosta de passeios pedestres e que vem de todo o mundo para aqui.
Subindo do Paúl para Chão de João Vaz encontrou-se um sítio bem pitoresco, O Curral, comida vegetariana muito bem elaborada, depois foi subir e descer a embasbacar-me com a paisagem, conversando com a malta que gosta de passeios pelos trilhos, alguns bem afogueados pelo calor, apeteceu-me voltar para casa, sentar-me ao balcão a saborear a paisagem.
Sinto-me no dever de alertar o leitor que esta imagem em que se vê lá no vale casario amarelo foi captada quando se descia para O Curral, esta última imagem sim é que avisto do meu balcão e que tanto me impressiona, e é por esta altura que ganho a noção de que há um odor penetrante no ar, alguém lá em casa até alvitra que pode andar por ali um incêndio, saio porta fora e vou falar com a D. Joana, dona de uma mercearia pegada à minha casa, que eu não me preocupasse, era o trapiche a funcionar, olhe, aproveite, vá lá beber um grogue, não abuse, para não ficar contente demais. Lá fui e pelo adiante vos contarei o que é isto do trapiche e do grogue, marcas genéticas de Santo Antão.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24407: Os nossos seres, saberes e lazeres (577): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (107): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: Ribeira Grande à noite, no dia seguinte em excursão com o sr. Adelino, não faltará Xôxô nem a Ponta do Sol (6) (Mário Beja Santos)